Um velhote e um cigano caminham na mesma rua, em direcções opostas. O velhote vai a remoer os demónios da vida com os botões, caminha de olhos postos no chão e da boca caem-lhe sons oriundos de um tempo em que o mundo ainda era silencioso e no qual a voz de um homem quando atormentada ainda era meritória de atenção. Hoje ele sabe que os seus queixumes são apenas murmúrios numa cacofonia infernal e sentindo a dor de quem não pode ser ouvido, resmunga, recusando-se a articular palavras perceptíveis. O casaco de cabedal preto que carrega cheira a esses mesmos tempos e apesar do resmungar e do forte cheiro a mofo, o cigano não se apercebe de que se não se desviar vai contra o velhote. O velhote, de olhos no chão e perdido noutro mundo, ainda menos se apercebe da presença do cigano.
E só quando embatem um no outro se apercebem das suas existências.
O velho, talvez por se sentir revoltado por sentir que mais uma pessoa não sentia a sua revolta, ou talvez por puro preconceito, disse: cigano filho da puta, assim baixinho, como num sussurro. O cigano não gostou. E como não gostou, respondeu. E o sangue é uma resposta que sempre foi inerente a espécie humana. A faca no ventre do velhote era fria e fazia-o sonhar com estórias da sua infância. Mas a verdade é que o velhote não morreu.
E como não morreu está no hospital, onde a família aguarda ansiosamente por noticias do seu estado. Isto significa que estão à espera de um prognóstico e não de um diagnóstico. O que eles querem saber é quando é que o velho vai morrer. Porque a verdade é que ele já se tornou um incómodo há muito tempo, com o seu cheiro e o seu racismo e o seu remoer constante. A verdade é que muitos desejam mesmo que ele vá, parta de uma vez, e usam expressões como: é melhor para ele, ou: assim pelo menos não sofre, para suavizar a coisa.
O cigano? Está no mesmo hospital, mas na morgue. Foi espancado e espezinhado por uma multidão enraivecida.
Mas este relato, apesar das tragédias que lhe estão inerentes, poderia até ter um final feliz (afinal, muitos dirão que o cigano teve o que merecia e o velho também não era santinho nenhum e embora não se justificasse o que o cigano fez, há muito que uma corja de pessoas de diferentes etnias desejava dar uma lição ao nosso protagonista). O problema foi que o filho da puta ouviu dizer que alguém o tinha confundido com um cigano e sentindo-se ofendido, quis descobrir quem tinha sido o atrasado mental que andava a difamar o seu nome para aí na rua. E todos nós sabemos que um filho da puta vai longe quando quer.
No dia seguinte, o filho da puta entrou no hospital as 07:53 da manhã com um uniforme de estafeta e rapidamente se apoderou de uma bata de médico. Consultou as fichas, descobriu o quarto, entrou e sufocou o velho com uma almofada. Quando a enfermeira respondeu ao alarme já o velho dava o último esticão, talvez já morto, talvez ainda vivo. O filho da puta saiu pela porta principal, de bata vestida, mas não sem antes cumprimentar a família do velho.
Aquando informados de que o seu ente querido havia morrido, a família duvidou de que fosse verdade. Não numa última ânsia de o verem vivo, nem num breve momento de negação, mas apenas porque a médica que lhes deu esta triste notícia era preta. E como o velho dizia e era bem verdade: Nunca confies num preto.
E nem queiram saber o que o atrasado mental fez quando descobriu que o filho da puta tinha usado o seu nome para insultar o velhote.