3 de Julho de 1923
Caro Joaquim Ossos,
Escrevo-te numa altura em que passaram já cinco dias sobre a minha chegada a esta mansão, e, mais do que a refulgência quente e acolhedora desse sol de verão, são as trevas sombrias do desconhecido que descem estranguladoras sobre o meu espírito. O restabelecimento do meu estado de saúde, motivo a que me propus inicialmente, torna-se, à luz dos últimos acontecimento, impraticável.
Encontro-me a sós desde há dois dias - consegui finalmente, a muito custo, dispensar os serviços do caseiro, o prestável Sr. António, que mora na vila de Antão, as umas boas 20 milhas deste ermo local. Por certo, já te chegou às mãos a primeira carta que enviei. Desde então muito mudou. Meu prestável e fiel amigo, escrevo-te a solicitar a tua presença, o teu auxílio; a tarefa que se me revela imediata tolhe-me a coragem e quebra-me a rectidão.
O primeiro indício de uma presença sobrenatural nesta mansão manifestou-se do segundo para o terceiro dia da minha permanência: o livro de memórias de família, que havia estado a consultar sobre uma mesa poeirenta na biblioteca, e que aí deixei a repousar, aberto sobre uma árvore genealógica, apareceu, na manhã seguinte, arrumado na estante de onde o tinha retirado. Interroguei o Sr. António sobre o assunto, mas o pobre homem, de cara lívida e lábios pendentes, quedou-se mudo e assustado, negando envolvimento com um leve aceno de cabeça. Desde então, de noite para noite, tenho reparado num conjunto de pequenas ocorrências - alguns objectos que mudam inexplicavelmente de local: uma cadeira mais próxima do pescoço da lareira, como se alguém lá tivesse desejado repousar; um candelabro maciço, de cinco gargantas, deslocado da sala de estar para a biblioteca; um par de cortinados cerrado, quando ainda no dia anterior penetrava sala adentro uma claridade celestial; uma gaveta deixada aberta, com vestígios de desarrumo interior.
Empreendi então uma busca meticulosa, divisão a divisão, cave e arrumos, visando desvendar a presença de algum estranho na mansão. Não dei com ninguém, e não encontrei nenhuma possibilidade que, por desleixo, permitisse o acesso à casa a partir do exterior. Descobri, no entanto, uma passagem que me era desconhecida – uma pesada porta de ferro negro que, erguida em abóbada, e a julgar pela arquitectura bisonha, bloqueia o acesso a algum salão ou ala. Confrontei novamente o Sr. António, que desta feita, encolhendo os ombros, afirmou nunca, em toda a sua estadia ao serviço da família, ter visto aquela entrada aberta ou usada. Tão pouco sabe o que quer que seja sobre o paradeiro da chave que lhe destranca os ferrolhos, ou sobre o que poderá ser encontrado do outro lado da passagem.
Ossos, esta noite acordei ao som distinto dos soluços do choro de uma mulher, carpindo dentro das paredes desta mansão, pareceu-me. De candeia em punho, resistindo ao medo que retesava os nervos, e sob o olhar atento que os meus antepassados me deitavam das paredes, vagueie pela casa – mas debalde, mais uma vez fui iludido. Pelos meus sentidos?
Estou determinado em levantar o véu deste mistério. A porta negra será arrombada. Mas não sem a força do teu carácter a meu lado, caro amigo. Aguardo-te impaciente,
O teu sempre,
L. Vidigal.
Sam