Cemitério
A imagem é esta: o homem aproximando-se ao longe, desfocado como que por uma lente fixa num objecto menos distante. O halo de transpiração em redor da figura vai ganhando nitidez, fundindo-se ao centro, à medida que ele mais perto, a cada metro reduzido. Caminha todos os dias até mim
(estou no meio do nada, sentado na terra, alguns tufos de relva despontam aleatórios, um joelho dobrado onde abraço e descanso as costas redondas, uma perna esticada de bota na ponta, o cabelo largado ao vento, sentindo-se que existe um quando sopra o outro)
no seu fato formal de gato-pingado que cheira a naftalina e a traças de roupeiro, calças cinzentas escuras, jaqueta preta em cima de colete em cima de camisa que só distingo na brancura do colarinho, sapatos escuros, enlameados, confortáveis como que ténis, e a enxada movendo-se com as ancas, assente no vale do ombro, segura pela dobra do pulso da mão que nos dedos prende um cigarro. O fumo perde-se de vista logo que lhe sai da boca. Árvores de cemitério, frondosas e esguias, frias como o vento que entre elas passa, alinham-se numa postura militar severa dos dois lados da estrada. Bolotas espalhadas no chão. Dão-nos vontade de as pontapear, de as mandar para longe junto com as recordações obsoletas. E por detrás, um imenso mar de lajes brancas sujas de fungos e de inscrições que nunca chegarão a seu destino - não há correio que faça o serviço. Alguns véus negros debruçam-se sobre o passado, colocam flores, limpam as ervas daninhas dos lençóis de pedra, falam com os mortos que ainda vivem dentro de si.
O coveiro chegou. Atira o cigarro fora depois de uma última e mais sofrega inspiração e pisa-lhe o arder.
Mostro-lhe a flor que arranquei há uns meses da terra. Ele assente com a cabeça um entendimento vago de veneração pela dor - faz isso todos os dias, comigo, com outros desgraçados, leva treino e experiência -, o olhar revela uma empatia presa no anzol da profissão. Retira a enxada do ombro, o casaco de cima, arregaça as mangas, cospe para a mão, esfrega-a na outra, e afasta as pernas enquanto aguarda o meu sinal. Deito-me então no chão húmido à sua frente, desabotoo da camisa, e com o dedo aponto no peito o local exacto - como se ele o não soubesse do hábito diário, como se a cicatriz não o revelasse mesmo que ele o não soubesse. Um golpe profundo, terra que se retira, uma pétala que se solta. Sobram poucas. Seguro o meu amor nos lábios, pelo caule, enquanto me vou levantando novamente, a seiva sabe a ácido de bateria, a memória sabe a fel. Há muito que o sangue não brota da ferida. Vai secando como toalha muda pendurada na corda trágica do tempo.
Desfocando-se...
Sam