A falta do azul e de todas as outras cores vivas. O mundo cinzento, não completamente a preto e branco, mas com as tonalidades esbatidas e o ar sufocante. Sei que o ar está bom, é monitorizado permanentemente, mas como não sentir claustrofobia quando se está soterrado dias infinitos numa mina.
Os dias custam a passar. As horas custam a passar e os minutos e os segundos também. Por isso escrevo. Cada palavra demora mais ou menos um segundo a ser escrita se, em média considerarmos que as palavras têm cinco letras. Essa é a minha velocidade de escrita se não tiver de parar para pensar. Vocês sabem qual é a vossa? Eu também não sabia mas aqui não temos falta de tempo. Temos de inventar artifícios para o tempo se gastar. Temos de comer o tempo antes que ele nos coma a nós.
Há quem se entretenha na conversa. Eu já não consigo falar com ninguém. Estou farto deles todos. Só falo dentro da minha cabeça ou com os olhos que lerão as palavras que eu escrevo.
Penso agora. Escrevo no presente mas quem um dia ler estas palavras, se alguém o fizer, tudo o que eu estou a relatar já passou, será passado portanto. Se calhar, para melhor entendimento deveria escrever no passado. Mas como posso escrever no passado aquilo que me está a acontecer agora? Claro que podia optar por escrever hoje o que me aconteceu ontem, já seria passado, ainda que um passado próximo e não distante. Os tempos verbais não se preocupam com a distância a que está o passado. Nem o futuro. Estranho. Uso um tempo verbal para falar do que me está a acontecer que é diferente do que uso para falar do que fiz há cinco minutos. Mas se falar de que há cinco minutos me sentei aqui a escrever utilizo o mesmo tempo verbal que utilizaria para contar uma história de dinossauros há duzentos milhões de anos. O tempo verbal não divide o mundo por épocas, apenas ao meio. O que foi – passado e o que será – futuro. O presente está no fio da navalha, prestes a tombar para o passado. O verbo dito no presente já é passado quando a frase se acaba.
Estes raciocínios podem não ser muito úteis, mas fazem todo o sentido e tenho de ocupar os pensamentos com qualquer coisa. Os meus colegas dedicam-se a outras coisas igualmente improdutivas. Uns rezam, outros culpam os patrões e outros masturbam-se contra as paredes da mina enquanto fantasiam com as mulheres que os aguardam lá fora. Ou não. Já há quem desespere de ciúmes imaginando o que elas poderão fazer com a certeza dos cornudos enclausurados debaixo de terra.
A mim ninguém me espera. Apenas o céu azul e o vento. Aqui em baixo não há vento. O ar é insuflado por uma bomba e extraído por outra, há portanto uma deslocação de ar, mas chamar a isso vento é como eu olhar para a abóbada negra que sustenta as toneladas de terra que se interpõem entre nós e a superfície e dizer que ali está o céu.
Os dias rastejam difíceis. Mas não há saída. O meu mundo perdeu a cor mas saber que existe um céu azul, ainda que eu não o veja, permite-me viver um bocadinho. Os meus colegas rezam, soltam imprecações e masturbam-se. Outras choram cheio de auto-comiseração. Acho que o cinzento entrou neles, perderam o azul dentro do olhar.
Todos nós aguardamos que nos venham resgatar. Muitos têm dúvidas do que vão encontrar. As famílias sequiosas dos seus abraços ou a cama ocupada com o seu ex-melhor amigo. Só eu não tenho dúvidas, por certo, quando sair daqui o céu não será vermelho.