Voar com dragões
Uma cinza espessa cobre todo o solo, dando-lhe uma tonalidade negra e seca. Aqui e ali, vêem-se ainda alguns troncos nus e negros, com um aspecto totalmente carbonizado, fruto da passagem de chamas incandescentes, cuja força inimaginável dizimava tudo à sua passagem. Um fogo ardente, que rapidamente tirou a vida a essas velhas e belas árvores.
Ao longe avistam-se ainda algumas colunas de fumo branco e denso, indicadores de que o fogo ainda devasta a floresta, incidindo agora sobre a pequena extensão de vegetação que ainda subsiste.
De vez em quando, vê-se passar um avião com alguns jornalistas que, aproveitam para anunciar mais um incêndio. Um que se junta aos muitos que já houveram, durante os dias quentes de Verão, e que antecederam este. Como se os incêndios devessem ser classificados todos da mesma maneira, como se cada local não tivesse a sua fauna e flora típicas. Como se uma catástrofe deste nível fosse apenas mais um formidável objecto de notícia. Um motivo para facilmente se poder ganhar algum dinheiro.
Todos os aviões que já haviam passado por esse local devastado e ermo, vinham excessivamente apressados, os jornalistas tinham pressa, necessitavam de boas imagens das chamas e do fumo, que ao longe ainda lutavam pela destruição. E tal era a pressa de todos eles que, nenhum dera pela presença de dois pequenos e inocentes miúdos, que se encontram sentados perto de um local ermo e cinzento, onde as chamas já se extinguiram.
Lágrimas brotam dos olhos de ambos, cristalinas, denunciando o ódio a tristeza que os consomem, os poucos, amputando toda a alegria e ingenuidade típica das crianças dessa idade. A sombra adensa-se sobre os seus corações frágeis, como se de um eclipse se tratasse, desfocando todas as suas lembranças felizes. Nas duas mentes formava-se já algumas perguntas. Como fora alguém capaz de dar início à destruição de tanta beleza? Que motivos levarão a actos tão mesquinhos como o de pegar fogo a algo que nunca fez mal a ninguém e que não se pode defender?
Mas não são apenas as lágrimas que fazem aqueles olhos verdes, pequeninos, brilhar. Neles reside ainda uma pequena e preciosa gota de esperança. Uma gota que luta para se libertar da escuridão que a envolve. Usando a arma mais poderosa de que dispõe, o sonho.
Agora, já não é a cinza nem o fumo que eles vêem, mas sim árvores cobrindo vastas serras verdes. E lá bem por cima das montanhas, brilhando ao Sol, já se avistam dois pequenos pontos dourados, que se aproximam, lentamente, ao sabor do vento. À medida que se aproximam, começam a ver-se as formas distintas de duas grandes e esplêndidas criaturas. As suas formas tornam-nas únicas. Têm a forma de uma serpente, mas são maiores, muito maiores, com grandes asas, duas pernas e pés que terminam em grandes e afiadas garras. Os seus corpos encontram-se revestidos por grandes escamas douradas.
São certamente dragões, criaturas obscuras e misteriosas mas por outro lado, inteligentes, sábias e pacíficas. Decididamente haviam aproveitado aquele lindo dia de Primavera, em que o Sol brilha intensamente, no centro de um lindo céu azul, para esticarem um pouco as asas ainda enregeladas do frio do Inverno, e para verem a bela paisagem primaveril que cobre a vasta extensão dominada pela raça dos dragões, onde se avistam agora flores de todas as cores possíveis e imagináveis, cobrindo campos e árvores. Nos cumes das montanhas ainda se avistam alguns farrapos da neve, que agora vai derretendo, dando origem a riachos cuja água corre alegremente, cristalina e fresca.
Estes dragões não vêem sós. No dorso de cada um, está sentado um rapaz que alegremente admira a paisagem. Ambos os rapazes vestem roupas brancas que lhes dão um ar majestoso. E as suas mãos agarram-se firmemente aos dragões que os conduzem, sem no entanto, as suas faces transbordando de alegria, mostrarem medo algum.
Os dragões abordam ambos, questionando-os acerca do rumo a tomar, mas nenhum responde imediatamente. Após algum tempo de meditação, os rapazes olham um para o outro e acenam positivamente, com um sorriso nos lábios. De seguida transmitem a sua opinião aos seus amigos dragões. Os dois querem observar o mar, não porque ainda não o tinham visto, muito pelo contrário, o facto é que nenhum dos dois teve alguma vez a oportunidade de observá-lo lá bem do alto.
Assim, mudam de direcção, rumando ao mar. E a paisagem vai mudando, dando origem a um amarelo-torrado característico do deserto de Sitar, o grande deserto do reino draconiano. Um local árido em que vivem criaturas diversas, desde as mais comuns, escorpiões, cobras, até a outras mais enigmáticas e estranhas vindas de outros locais do planeta, mais ermos e remotos. A temperatura aumenta ligeiramente, fazendo com que o estranho grupo tenha de se elevar um pouco de modo a ter uma viagem mais fresca.
E, quando avistam o azul-escuro do mar, descem, de modo a poderem sentir o vento fresco bater-lhes na cara e o aroma leve e ligeiramente adocicado da maresia, entranhar-se-lhes nas narinas, transmitindo-lhes um sentimento de calma, de perfeição e de paz. Uma torrente de sentimentos agradáveis inunda os dois pequenos, quando o Pôr-do-sol se inicia. Os seus olhos pequeninos irradiam de alegria, contemplando todo aquele espectáculo natural. Uma manifestação da natureza no seu melhor.
Mas o Sol acaba por desaparecer no horizonte, dando lugar à noite, e com ela evaporaram-se os dragões, o mar e todo o resto daquela visão magnífica.
O sonho terminou, deixando os dois meninos verem finalmente a realidade. No entanto, dos olhos de ambos já não correm lágrimas, é neles visível uma aura de esperança. Ambos perceberam, por fim, que estavam a tomar a atitude errada, ficarem ali sentados a chorar não alterar a situação, apenas deixá-la no estado em que está, de total devastação.
Na memória do pequeno Fernando ressoaram as palavras que a mãe lhe costumava dizer, “Não há nada que não se consiga com força de vontade”. Já sabia qual o objectivo, aquilo para que iria lutar, e força de vontade não lhe faltava, apenas tinha de avançar com aquilo que defendia, e que sabia estar correcto. E o irmão João pensava da mesma maneira, por isso, levantaram-se ambos e foram para casa. Há que começar do início, e no caso de duas crianças de dez anos, há que colocar o problema perante os pais e apresentar-lhes as propostas para a sua resolução.