[size=125]Máscara[/color]
Olham-na com olhar inocente mas, as palavras soam-lhe num tom cruel e ingénuo. São palavras ríspidas, quase mortíferas, as palavras que a atingem rapidamente, quase como se não fossem fruto de inteligência alguma de tão grande que é a sua maldade e ingenuidade. Porém, os orifícios causados por estas armas cruéis rapidamente se obstruem sem deixar marcas ou sequer indícios de passagem.
Enquanto estas armas cruéis em forma de palavras se esvaem no ar, Ângela pensa numa forma de manter a sua face angelical. Não quer quebrar rispidamente a porcelana da máscara que traz na cara, aliás, não pretende sequer quebrar essa barreira que lhe permite uma vida de quietude e serenidade. Apesar de ser alvo de severas críticas por parte de colegas e amigos, prefere a imagem angelical a uma imagem altiva e demoníaca, esta segunda imagem abalaria a serenidade da sua vida de um modo demasiado devastador.
Os pensamentos desvanecem-se e Ângela volta à realidade, quase como quem sai de um coma profundo. Olha atentamente para as suas oponentes. Têm uma aparência frágil, apesar de uma certa magnificência. Mas apenas isso, uma sumptuosidade forçosa como a de dois palhaços que se esforçam para fazer rir uma multidão de indivíduos infelizes. E a sua cara forma um sorriso ténue que logo se apressa a disfarçar, para novamente a cobrir com uma expressão marmórea e desinteressada.
Ângela permanece mais um pouco no local onde está, de frente para as adversárias, no restaurante onde acabaram de jantar com uns antigos colegas de turma. Mas, por fim, decide sair daquele local, onde o ar está demasiado pesado e quase sem vida. Logo que pode, sem fazer sequer uma despedida apropriada dos presentes, procura uma brisa que a leve delicadamente para outro local qualquer e acaba por ficar a passear pelas ruas pouco movimentadas.
Durante esse passeio vai sentindo o ar fresco a entranhar-se-lhe na pele enquanto olha para os carros que vão passando. Vai-se perdendo no espaço e por fim, no tempo. E logo descobre que na verdade não era ali que queria estar, queria sentir o leve odor da maresia e sentir os grãos finos de areia nos pés. Mas como o carro está no mecânico e a praia fica a uns bons quilómetros de distância, fica limitada ao ar fresco das ruas da cidade, onde as luzes incidem sobre as pedras da calçada dando-lhes um ar quase irreal. Onde as árvores raramente aparecem no campo de visão e onde os azulejos predominam nas paredes brancas, fustigadas pelo tempo. O ambiente permanece pesado, apesar da aragem sente-se o odor leve a fumo de carros. No entanto, o céu exibe toda a sua beleza negra acompanhada das suas estrelas cintilantes e da lua prateada e rechonchuda.
Não se demora e logo chega a casa. À entrada, depara-se com o fenómeno típico das noites de sábado. Uma visão crua de uma vida de prazeres sem fim, a vida de alguém que não passa de um obstáculo na sua vida. A vida do namorado, que noite após noite, esquece que a vida é feita de causas e consequências. Uma vida feita em redor das bebidas alcoólicas e das suas consequências, consequências estas que podem levar a uma noite de sono no chão da casa da namorada.
Ângela é sacudida por uma onda de cansaço e de rancor. Cansaço por uma existência feita de situações desagradáveis. Cansaço pela monotonia da rotina do seu dia-a-dia. E rancor, rancor por não conseguir pegar nas malas e mudar de filme.
Pensa no quão desagradável é aquela situação mas repreende-se pois, na verdade, já devia estar acostumada. No entanto, não lhe sai da cabeça a ideia de parar de agir de um modo tão pacífico e angelical e mostrar que tem garras e que estas são bem aguçadas, capazes de fazer sangrar qualquer tipo de pele ao menor toque.
Começa a ficar impaciente…. Pára um pouco para pensar numa solução para aquele enigma. Pensa naquilo que fez nos outros sábados, simplesmente ignorar. Mas na realidade, a situação não é do seu agrado e pressupõe medidas mais eficazes do que a inércia.
E novamente volta à estaca zero, está farta de tudo aquilo mas não sabe que fazer para mudar as regras do jogo. As peças permanecem paradas no tabuleiro à espera que as movimente mas, há sempre um mas…um motivo pequeno, quase insignificante, que a leva a uma atitude de inércia perante aquele problema. Na verdade, esse “mas” aparece em casa paço que dá, como veneno que corre rapidamente pela corrente sanguínea até infectar todo o corpo e mudar o destino.
Por fim, Ângela chega à conclusão de que está na altura de mudar um pouco a sua postura perante os outros. Mostrar um pouco daquilo que está por detrás da máscara. Mostrar que tal como todas as outras pessoas, contém em si um pouco de anjo e um pouco demónio. E, sem pensar mais, pega naquele pedaço de insignificante humanidade e coloca-o do lado de fora da porta que imediatamente a seguir fecha. De seguida, dirige-se à estante, de onde, após uma breve observação e análise, retira um livro.
Troca de roupa, pega no livro e começa a lê-lo, página a página. Um hábito que adquirira na juventude e que agora perpetuava todos os dias. Porque os livros com a sua ficção mostram a Ângela aquilo que é sem a máscara. Enquanto o namorado se embriaga com bebidas alcoólicas, a ela basta-lhe um livro para se embriagar. E ela bebe o néctar daquelas páginas finas e voa com asas de anjo e corpo de demónio.